
Em tempos de COVID-19, vivemos um cenário de inadimplemento generalizado das obrigações contratuais, o que nos leva a revisitar conceitos clássicos do direito civil, como a culpa e a mora.
Desde o último dia 11, quando a Organização Mundial da Saúde declarou o surto da COVID-19 como pandemia global, os governos passaram a impor uma série de medidas restritivas no combate à propagação do vírus.
A restrição à circulação de pessoas e a determinação de fechamento do comércio fadou à ruína milhares de empresas e empresários.
Sobretudo no âmbito das prestações de serviços, a busca por escapes contratuais que viabilizem a revisão ou até a rescisão antecipada de contratos empresariais se aquece e ganha importância a cada dia.
O grande desafio é encontrar, nas clássicas categorias do Direito Civil, algo que permita flexibilizar a força vinculante dos contratos diante destas circunstâncias imprevisíveis e, por enquanto, insuperáveis.
As primeiras expressões que nos vêm à cabeça diante da excepcionalidade e imprevisibilidade da pandemia são o caso fortuito e a força maior.
Quando trata do inadimplemento das obrigações, o Código Civil expressamente excepciona a responsabilidade do inadimplente quando há caso fortuito ou força maior:
Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.
O caso fortuito e a força maior funcionam como excludentes da responsabilidade do devedor, mas nãoobstam a caracterização do inadimplemento em si.
Além disso, a existência de uma pandemia, embora se caracterize como caso fortuito ou força maior não opera automaticamente a suspensão ou cancelamento das obrigações contratuais.
Outros fatores estão em jogo e serão considerados quando da definição dos efeitos da crise atual sobre o inadimplemento contratual, dentre eles a prova da impossibilidade financeira do devedor como efeito direto da pandemia.
Também muito se tem discutido sobre a possibilidade de resolver os contratos por onerosidade excessiva[1] ou invocar a renegociação forçada, argumentos muito comuns nas revisões judiciais dos contratos.
Mas a situação pode ser analisada sob outro ponto de vista.
Todas essas alternativas buscam excepcionar a responsabilidade do devedor inadimplente que incorreu em mora, ou seja, que deixou de pagar no tempo, lugar e/ou forma convencionados.[2]
Mas se a falta ou o atraso no cumprimento das obrigações contratadas decorre direta e exclusivamente de um fenômeno mundial, imprevisível, extraordinário, excepcionalíssimo, há mora?
Se não houve culpa do devedor, incorreu ele em mora?
O Código Civil diz que não.
Art. 396. Não havendo fato ou omissão imputável ao devedor, não incorre este em mora.
Não basta o descumprimento da obrigação pra que haja mora.
Embora o inadimplemento se presuma culposo, o devedor pode afastar essa presunção demonstrando que a inexecução da obrigação foi causada por fatores externos, imprevisíveis, excepcionais, extraordinários.
Para que haja mora, é essencial que haja culpa do devedor no atraso do cumprimento.
Se há caso fortuito, força maior, estado de emergência, calamidade pública, pandemia global: não há culpa.
Se não há culpa, não há mora.
É claro que sempre e em todo caso deve-se apurar se e em que proporção o fato extraordinário – no caso as circunstâncias e o desequilíbrio causado pelas medidas de contenção da COVID-19 – age diretamente no descumprimento das obrigações contratuais.
A assessoria de um profissional experiente e especializado é essencial pra garantir que as (re)negociações contratuais reestabeleçam o equilíbrio entre as partes de uma forma sustentável e que minimize o risco de uma futura interferência do judiciário sobre o contratado.
[1] Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
[2] Art. 394. Considera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não quiser recebê-lo no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer.